quarta-feira, 30 de outubro de 2019

O revolucionário em situação de rua

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Ao atravessar a rua em um bairro nobre da cidade, me deparo com um homem alto e magro, aparentando uns 30 anos. Pelas suas roupas e sacos de lixos recicláveis que carregava, concluí a partir do pré-conceito que era alguém em situação de rua.

Ele em tom de subserviência me chama de padrinho e vai logo confessando orgulhoso que não usa mais drogas. Meu refúgio agora é a arte. Para fugir da realidade eu escrevo, pinto e desenho."

Parei para ouvi-lo. Notei a surpresa em seu semblante. 
Iniciou falando timidamente mas ao passar os minutos já estávamos em um papo de amigos.

Sugeri que ele vendesse a arte que produzia. Me respondeu em tom solene 
"A arte?... A arte não se vende padrinho. Isso seria até pecado".

Ao me sentir envergonhado e admirado ao mesmo tempo, só soube observa-lo por alguns em silêncio. 
 
"Padrinho, me perdoa, mas eu queria um pouco de dinheiro" 

Falei que não tinha dinheiro. Mas me interessei em saber sobre sua arte.  
Após uns instantes de estranhamento ele se pôs a falar orgulhoso das suas produções.  

Me perguntou no que eu trabalhava. Disse que era professor. (E talvez isso explicasse a minha falta de dinheiro). 

Ele me respondeu "dinheiro é nada perto do que o senhor tem padrinho. Sabedoria". 

Rimos e ele perguntou se eu poderia ensinar algo a ele. 

Disse que eu era professor de história e que acreditava que o conhecimento não se transfere, se constrói, em conjunto. 

Me ignorando respeitosamente ele pediu pra eu explicar a revolução Francesa. 

Enquanto senhoras assustadas nos miravam  enquanto passavam com seus cachorros na coleira, jovens atravessavam a calçada nos ignorando, eu lhe falava do movimento iluminista e da sua defesa por valores como liberdade, igualdade e fraternidade. 

Expliquei um pouco o contexto da monarquia absolutista, da sociedade estamental e do poder da igreja no antigo regime. 

"Exploração dos políticos, uns com toda riqueza e outros passando fome... Tô sacando" disse ele em tom reflexivo durante a breve aula. 

Terminei falando um pouco das diferenças entre a elite burguesa girondina e os revolucionários jacobinos, que colocaram fim ao reinado e vida do rei Luís XVI, guilhotinando-o. Iniciava aí o sonho da República contemporânea (livre, igualitária, justa, fraterna....) 

Ele em tom de compreensão me diz "Eu tenho já um facão. Muito obrigado pela aula padrinho. Agora eu vou é matar os doutores pra fazer a revolução" 

Ele me estendeu a mão firmemente e saiu. 

A educação é mesmo uma arma perigosa... 



segunda-feira, 14 de outubro de 2019

Pedro meio cinza e suas meias coloridas.




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Pedro era um senhor de meia idade. Meio magro. Meio alto.
Reconhecia-se como um homem médio. Ou melhor, um homem pela metade.  

Trabalhava como mais um auxiliar administrativo no serviço público.  
Morava com sua esposa e uma filha num apartamento alugado em um bairro distante do centro da cidade. 

 Fazia seu deslocamento com um carro semi-novo que estava pagando aos poucos. 
Pensava em divórcio. Mas estava esperando a mulher tomar a iniciativa de pedir a separação.

Tinha medo de morrer sozinho. Temia perder o contato com a filha, que na visão dele já lhe achava um cara meio fracassado.

Certo dia, cansado de ter uma vida pela metade, Pedro antes de dormir, em um choro seco, prometeu pra si mesmo que a partir da próxima manhã tudo seria diferente. 

Acordou e simplesmente decidiu não ir trabalhar. Depois de anos sem sequer se atrasar, Pedro troca o trabalho por uma manhã inteira na cama. 

Sentindo-se um rei, levanta quase meio dia e senta-se na varanda. Ainda de cueca e meias, resolve abrir um whisky escocês que ganhara de uma tio rico e guardava como enfeite.  

Ao sentir o último gole queimar lhe a garganta, arremessa o copo vazio que estoura na parede. 

Coloca seu terno que só usava em batizados ou casamentos e resolve sair sem rumo definido. Enquanto dirigia ao som alto, decide viajar para o litoral. 

15h e em uma bela terça feira de sol, deita-se somente de cueca sob o sol de uma praia vazia. Mergulha e nada alegremente até perceber o sol se pôr. Seca-se com o blazer e resolve colocar novamente a calça e camisa. 

De sapatos sem meias pega seu carro e volta para a cidade. No caminho, resolve jantar em um chique restaurante. Come ignorando completamente os olhares curiosos dos garçons. Ao passar pelo centro da cidade, resolve parar em uma casa de massagens. Logo de cara chama as duas mulheres mais atraentes do salão para o sofá que estava.

 Meia hora de conversa e sobe com as duas para o quarto. Deixa o estabelecimento já era quase de manhã. Ao chegar na garagem do seu prédio, chora. Chora muito. Por tanto tempo achava que o sentido da vida estava no que ele não fazia. E agora tinha certeza, a vida não fazia sentido. 

Pega o elevador pensando que tinha excedido a velocidade do carro e portanto certamente acumulados multas de sua ida a praia. Pagou as garotas de programa com o cartão que estava no nome da esposa e está saberia da traição. Tinha desaparecido e não retornado as ligações da filha que deveriam estar muito preocupada. Gastou mais do que tinha para manter a família durante o mês. 

Ao chegar no sexto andar paralisa vendo a porta abrir lentamente enquanto pensa o que fará. Seu pensamento é interrompido por uma sirene. 

Seu celular toca exatamente 7:15 e ele acorda a tempo de ver sua filha saindo para a escola com a mãe. Fica paralisado percebendo que havia tido um sonho e enquanto veste o seu uniforme monocolor pensa que descobriu o sentido da vida. 
Veste meias coloridas novas e sai sorrindo.